terça-feira, 21 de setembro de 2010

O poder impiedoso do riso, por Valmir Santos

Um bom texto, bons atores, boa direção e um ano eleitoral de prato cheio fazem da Farsa do
poder uma experiência deliciosa. Uma celebração à picardia, ao domínio técnico, à consciência
crítica, ao sotaque teatral do lugar que fala e à ousadia do recém-nascido grupo Osfodidário
em terras paraibanas.

Os matizes da Commedia Dell’Arte são evocados com desenvoltura, suas máscaras de meia
face, seus personagens arquetípicos: a autoridade, a casadoira, o astucioso, e por aí vai.
Uma ressalva é investir mais no rito de pôr e tirar as máscaras, um detalhe precioso que se
insinua, mas perde a constância, o que redimensionaria mais essa passagem de mundos. Já
o figurino neutro (base preta) impõe aos atores o desafio de transitar pelos tipos e por eles
mesmos, sujeitos fora de cena no acompanhamento percussivo com instrumentos tocados
pelos próprios ao vivo.

Outra boa sacada é a iluminação: a pequena ribalta que amplia as sombras dos tipos ao fundo esculpe a própria marca ensandecida do poder. A obra original do potiguar Racine Santos é adaptada com contundência ao corpus estético que serve. À estrutura dramatúrgica bem-fornida, Osfodidário acresce sua pesquisa de origem em torno da corrupção local, nacional e universal. O quintal, como não poderia deixar de ser, é fartamente colorido com referências que o plateia fareja de longe. A montagem tem o público
nas mãos e não pestaneja em abandoná-lo.

O espetáculo foi concebido à maneira colaborativa. O elenco dirigiu a si mesmo sob
supervisão de Christina Streva. Essa autonomia reflete o entrosamento desses comediantes,
na acepção mais nobre da palavra: o artista que ginga pelos gêneros com desenvoltura. Aqui,
claro, o império é o da farsa, e a ele, digo, ela todos se rendem com causa. O quarteto Daniel
Propino, Dudha Moreira, Fabíola Morais e Thardelly Lima mostra-se apimentados no timming,
na troca de olhar entre si e com a plateia, no ritmo do espetáculo que não afrouxa de cabo a
rabo. Nem quando um espectador faz as vezes do governador que chega à cidade de
Cudimundo para inaugurar uma obra fantasma, truque do prefeito corrupto.

A escatologia aliada à língua ferina são devotas da tradição teatral em praças e palcos,
recorrendo ao riso para ler sua realidade mais séria com criticidade. A esse legado, a
pesquisa de linguagem oriunda da Universidade Federal da Paraíba não faz feio. Expõe a
corrupção endêmica para além dos gabinetes e arranjos partidários, enraizada mesma no
cotidiano até de um poeta popular como o Ferreirinha, cujo enredo lhe prega uma peça.




* Valmir Santos é crítico de teatro e convidado do 13º Fenart

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